sábado, 9 de outubro de 2010

Fragilidade da evidência (2)


«Mas o que verdadeiramente me inquieta é outro fenómeno, aparentado com o que acabo de mencionar, e que afecta particularmente a exposição ou comunicação das ideias. Quando se afirma, oralmente ou por escrito, algo que é evidente, aquele que o ouve ou lê “vê” por sua conta, por si mesmo, que aquilo é “assim”. A evidência se impõe com força incontrolável, obriga à sua participação, é uma iluminação que desvela a realidade, torna inteligível, permite possuí-la e fazê-la “própria”.
Não obstante, é provável que, salvo excepções pessoais que podem ser contadas, essa situação dure pouco. Aquele que viu com evidência algo e compartilhou essa iluminação sente depois que isso se enfraquece como o fazia antes dessa descoberta, “recai” no estado anterior, perde a evidência que parecia conquistada.
Essas “recaídas” são decisivas. (…) Tão logo cessa o esforço intelectual, cede a tensão que conduziu à evidência, voltam as vigências em que se estava, sobrepõem-se ao que em certo momento se viu com clareza, fazem que seja esquecido e se desvaneça.
Isso ocorre sobretudo quando se muda de perspectiva. Isto é, num contexto determinado, quando se percebeu essa verdade evidente, foi ela compreendida e compartilhada; mas se se volta o olhar noutra direcção, se se pensa – e sobretudo se se “vive” – em dimensões diferentes, produz-se uma estranha evaporação da evidência mal possuída e, por isso, falo da sua fragilidade.
Isso me parece extraordinariamente grave. É o maior obstáculo à difusão do verdadeiro, justificável, responsável. Ganha-se e perde-se, de acordo com os momentos, as épocas, as situações sociais. Nalgumas, perde-se mais do que se ganha. É a explicação dos grandes desastres que sobrevêm a parcelas da humanidade e que se mostram inexplicáveis, se não se leva em conta esse risco permanente.

O pensamento – falemos agora só do ocidental – foi descobrindo durante séculos verdades resplandecentes, que levaram a entender a realidade de modo que possa resistir às deformações e erros, a todas as usurpações. E, no entanto, esses mesmos países sucumbiram a verdadeiras inundações de erros crassos, que submergiram as evidências adquiridas por meio de geniais e contínuos esforços criadores. Uma espécie de maré alta de falsidades estabelecidas passa por cima das realidades descobertas por séculos de tensão criadora e veracidade, de amor à verdade».

Julián Marias, Tratado sobre a convivência, Martins Fontes Ed., São Paulo 2003, pp. 100-104

Sem comentários:

Enviar um comentário