terça-feira, 21 de setembro de 2010

Espiritualidade consumista (II)

«Quando domina uma concepção intramundana e subjectiva da salvação, cresce, em paralelo, a comercialização das actividades religiosas e para-religiosas, uma vez que os indivíduos têm a necessidade de encontrar “no exterior” meios de consolidar o seu universo de sentido que a religião institucional não consegue construir. Nenhum exemplo deste fenómeno é tão elucidativo quanto a “nebulosa mística esotérica” e os grupos que se autoproclamam de New Age. No seio deste movimento multiplicam-se as livrarias especializadas e as salas de exposição, toda uma oferta cultural feita de aulas com gurus, de centros de desenvolvimento pessoal e espiritual, estágios de meditação zen e yoga, ateliers sobre os “chakras”, consultas de “medicina espiritual”, cursos de astrologia e numerologia, etc. Visto que as obras de religião e os romances espirituais obtêm um tremendo êxito ao nível de vendas, muitos editores investem neste novo e prometedor nicho. Na sociedade de hiperconsumo, até a espiritualidade se compra e vende. Se é verdade que a reemergência pós-moderna do religioso exprime um certo desencanto face ao materialismo da vida quotidiana, verifica-se também que o fenómeno é cada vez menos alheio à lógica comercial. A espiritualidade tornou-se mercado de massas, produto a comercializar, sector a gerir e a promover.
Simultaneamente, devido ao enfraquecimento das capacidades organizadoras das instituições religiosas, verifica-se uma forte tendência para a individualização do crer e do agir, para a criação de laços particulares e para a relativização das crenças. Hoje, até a espiritualidade funciona em livre-serviço, na expressão das emoções e dos sentimentos, na procura resultante da preocupação com o melhor-estar pessoal.
(…) A reafirmação contemporânea do religioso encontra-se marcada pelos mesmos traços que definem o turboconsumidor experiencial: participação temporária, incorporação comunitária livre, comportamentos à escolha, primazia do melhor-estar subjectivo e da experiência emocional. A este nível, o Homo religiosus afigura-se mais à continuação do Homo consumericus de outras formas que não a sua negação. Não se trata, evidentemente, de reabsorção do religioso pelo consumo: simplesmente, a fórmula do supermercado estende-se aos territórios do sentido, os princípios do hiperconsumo invadem a alma religiosa».

Gilles Lipovetsky, Felicidade paradoxal, Ed. 70, Lisboa 2007, pp. 111-113

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